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Brasil

Vaquejada: Dois lados emocionais de uma discussão necessária – Por Hugo Fernandes

Por falar em cultura, comecemos por essa primeira parte da polêmica

Da Redação do Diamante Online

06/11/2016 às 12:56 | Atualizado em 17/03/2024 às 11:21

Vaquejada: Manifestação cultural ou maus tratos a animais?

Nas últimas semanas, o Brasil tem acompanhado uma forte polêmica em torno da prática da vaquejada. O Superior Tribunal Federal, em uma decisão apertada no dia 06 de outubro, tomou como inconstitucional a prática da atividade. Em paralelo, o Senado aprovou nesta semana uma Lei que tornaria o esporte como patrimônio cultural e imaterial do País. Como toda boa polêmica, principalmente nesse nosso atual contexto social, o que não faltam são injúrias, discussões e achismos passionais entre os que condenam e os que defendem a vaquejada. Se há um equilíbrio nessa história, está na quantidade de trocas carinhosas entre os grupos. O que se vê de resto é desequilíbrio, justamente porque esse assunto mexe com o emocional das pessoas de uma forma bem distinta. De um lado, o amor pelos animais. Do outro, questões culturais fortemente arraigadas em toda uma região.

Por falar em cultura, comecemos por essa primeira parte da polêmica. Parte dos grupos contrários à vaquejada afirma veemente que a atividade não é manifestação cultural. Erro crasso. Claro que é cultura. É um direito discordar da existência da prática e achá-la absurda (se você é contra, leu até aqui e está p*** comigo, espere mais um pouquinho), mas ninguém pode dizer que ela não é cultural. Na Caatinga, o gado é majoritariamente criado solto. Para dizer quem é o boi de quem em determinadas épocas do ano, eram organizadas as festas de apartação ainda no século XVII, onde os vaqueiros de cada fazenda dominavam o manejo do gado errante para seus respectivos terrenos. Os animais mais bravios que acabavam fugindo mata seca adentro exigiam a captura de profissionais de extrema perícia, que os derrubavam pela cauda. Esses vaqueiros eram muito bem recompensados e ganhavam status regional, o que motivou o aproveitamento dessa atividade em eventos esportivos. Se pudéssemos (não podemos, só para constar) medir cultura por tempo, a vaquejada seria “mais cultural” que o frevo, que possui pouco mais de 100 anos ou até mesmo que o boi-bumbá, surgido no século XVIII.

O fato de ser uma reconhecida manifestação cultural diminui o poder de crítica acerca dos maus tratos sobre os animais? Não. Essa também é uma resposta muito simples. Em nota, o Conselho Federal de Medicina Veterinária se posiciona de modo contrário à vaquejada. O órgão afirma que o esporte pode causar “luxação das vértebras, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, estabelecendo lesões traumáticas com o comprometimento, inclusive, da medula espinhal”. Como contra-argumento, os defensores da atividade apontam o uso do rabo artificial, um protetor de cauda que, embora esteja longe de ser amplamente utilizado em todos os eventos, sobretudo nos mais modestos, vem ganhando obrigatoriedade em torneios de médio e grande porte. De fato, o instrumento diminui os riscos do principal tipo de lesão, que é o desenluvamento da base da cauda, mas ainda não há alternativas que evitem por completo patas quebradas, exostoses, miopatias e injúrias internas.

Quanto a esses fatores, o lobby pró-vaquejada (diga-se de passagem, muito forte no Congresso por conta da Bancada Ruralista) afirma que, atualmente, os eventos contam com plantão veterinário, os animais participam de menos corridas do que antes e os casos de injúrias vem caindo constantemente. Há quem se apegue inclusive ao voto do Ministro do STF Luis Roberto Barroso, que sugere a proibição “quando for impossível sua regulamentação de modo suficiente para evitar práticas cruéis”. A questão é que isso é muito subjetivo. Para os grupos de proteção animal, submeter o gado ao estresse já é maus tratos e portanto esses argumentos não seriam válidos, mas se isso for levado à risca, todo o processo de criação pecuária teria de ser proibido. Embora esse seja o sonho de boa parte dos ativistas, sabemos bem que isso traria consequências econômicas e sociais bastante graves. O balaio é muito complicado.

Existem ainda os defensores que pontuam o caráter de exceção da proibição da vaquejada em relação a outros esportes de mesmo teor. De fato, os argumentos utilizados para tal encaixariam-se perfeitamente para proibir o rodeio, a gineteada sulista, provas de laço e outras atividades envolvendo animais. Proibir somente a vaquejada pode parecer inicialmente um ato com tons xenofóbicos em relação ao Nordeste brasileiro, mas é válido ressaltar que a decisão partiu por conta da análise de uma lei cearense, que transforma o esporte em patrimônio cultural e imaterial do estado. Foi essa a Lei, e portanto a interpretação para outras esferas do País, que foi julgada como inconstitucional. Paradoxalmente, o início da proibição se deu através de uma lei pró-vaquejada.

Na última semana, centenas de pessoas acamparam em Brasília pedindo a mudança da decisão do STF, imbuídas principalmente de argumentos econômicos. A Associação Brasileira de Vaquejadas estima que os eventos movimentam mais de 700 milhões de reais, gerando cerca de 750 mil empregos diretos e indiretos. Cidades como Alto Sereno – BA e Itapebussu – CE tem suas economias fortemente dependentes da atividade. Em um cenário de crise na região mais pobre do País, é de grande importância levar isso em consideração.

Diante de tantas variáveis, o que decidir? Que princípios éticos seguir? O da proteção animal incondicional? O do direito a manifestações culturais? O da estabilidade econômica de municípios pobres? São escolhas que dependem muito do contexto social de cada grupo e que certamente ainda terão muitos fatores a serem discutidos. Particularmente, eu não compactuo com a ideia de que a minha diversão possa ser dependente de qualquer sofrimento animal, apesar de compreender as questões evolutivas associadas a isso. Entretanto, pela existência de fatores sociais tão complexos, vejo com bons olhos a possibilidade de regulações cada vez mais restritas e que caminhem para uma extinção mais gradual do que abrupta, para que impactos econômicos e culturais não sejam sofridos de forma tão drástica. De todo modo, é preciso entender que culturas evoluem e, pelo andar da carruagem, essa carruagem muito em breve não será puxada por bois.

PolêmicaPB

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